A heroína moderna Florinda e seus infortúnios em estudo comparativo dos cronotopos criativos Mundo de Florinda e Mancha de D. Quixote

Abstract

Neste trabalho, analisa-se a primeira parte do livro Infortúnios Trágicos da Constante Florinda – Infortúnios Trágicos I, de Gaspar Pires de Rebelo, publicado em Portugal no século XVII. Esse volume trata da jornada da protagonista Florinda pelo mundo, de forma autônoma e emancipada, em duas fases distintas: na primeira, travestida em Leandro e na segunda, expondo sua identidade feminina. Em ambos estados, ela perambula sozinha pelas estradas ocultas onde andam aqueles que não querem ser encontrados. Mesmo sendo bastante popular na época de sua publicação, apenas no século XXI este livro foi revisitado para estudos literários e novas edições foram publicadas, tanto em Portugal quanto no Brasil. Considerando isso, pretende-se aprofundar na compreensão do papel da protagonista Florinda, demonstrando que, com o surgimento de tal personagem, surge também uma heroína moderna seiscentista. Para atingir os objetivos propostos, realiza-se a leitura da obra em estudo sob o viés bakhtiniano do dialogismo, da carnavalização da literatura, do realismo grotesco e da orientação cronotópica, também com o apoio de registros históricos da censura inquisitorial e do papel da mulher seiscentista. Analisam-se as características da configuração de Florinda, bem como as do cronotopo no qual está inserida. Com esse fim, o cronotopo Mancha, do herói moderno D. Quixote (cervantino) norteia a concepção de cronotopo criativo e serve como parâmetro para esse estudo. Assim, a partir das perspectivas mencionadas, revelam-se características modernas da heroína, através dos traços carnavalescos da obra, principalmente os seguintes: profanações ao sagrado, mésalliances carnavalescas, coroação-destronamento e paródia do amor cortês. Nesse sentido, Florinda reivindica a mulher seiscentista, por meio de ações carnavalescas que representam, de forma velada, sua insubmissão ao sistema patriarcal vigente. Ela arrebata o direito de tomar dec isões, contribuindo para a construção de uma mentalidade feminina de firmeza e de constância a seus ideais individuais. A protagonista exorta a ruptura das limitações físicas e intelectuais, impostas à figura feminina, reivindicando suas antecessoras homônimas (Florinda, a Cava, e princesa Florinda de Lacedemônia) e também renovando os parâmetros de engenho e de transgressão. Em vista disso, tal heroína caracteriza uma figura moderna que surge no século XVII não apenas como representante de seu gênero, mas como um ser humano incompleto e, ao mesmo tempo, complexo. Portanto, a relevância do presente estudo reside no fato de poder colaborar significativamente com as pesquisas literárias – ainda escassas – que resgatam a obra de Gaspar Pires de Rebelo, oferecendo subsídios tanto para o entendimento da importância de Infortúnios Trágicos I dentro da história literária portuguesa quanto para sua relevância social enquanto instrumento de humanização e denúncia. Ademais, estima-se contribuir para os estudos comparados da obra de Pires de Rebelo e de Cervantes e para os estudos que abordam perspectivas bakhtinianas.